Vizinhos da Zona de Autossalvamento da Barragem Doutor em Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto/MG, revelam o descaso da Vale com a área.
Ao caminhar pelos arredores da Zona de Autossalvamente (ZAS) da Barragem Doutor, em Antônio Pereira, duas coisas chamam muito a atenção. A primeira é o mau cheiro, o ar empestado pela putrefação, carniça. A segunda, é a destruição e o descaso, uma cena de guerra, com imóveis depredados, abandonados, entulhados de restos de demolições e lixo, muito lixo. Ao conversar com a vizinhança, as pessoas que residem nas proximidades e convivem, cotidianamente, com a Zona de Autossalvamento, um terceiro elemento aparece: o medo! “Eu olho pro lado, vejo a barragem, olho pro outro, vejo a barragem. Eu sinto uma sensação de perigo. É Deus que guarda, mas a gente não sabe o momento certo que ela pode romper. Ela não vai avisar quando vai romper, como aconteceu no Fundão e em Brumadinho. Ela não avisa, então pega todo mundo de surpresa”, alerta Dona Giovania Santana Gonçalves, 62 anos, moradora do distrito há 18 anos e que hoje integra a Comissão de Pessoas Atingidas de Antônio Pereira.
Quanto maior a proximidade com a ZAS, maior a sensação de perigo. “Ah, é difícil! Porque o pessoal de baixo saiu e nós ficou aqui, se eles saiu de lá por causa do risco. E nós aqui? Como é que vai ficar? A gente fica com a cabeça meio perturbada. Porque é difícil, a gente fica com medo”, relata Ana Júlia*. A moradora que preferiu não ser identificada nos conta ainda sobre a situação dos imóveis, alguns demolidos pela própria mineradora, outros com janelas e portas quebradas, completamente depredados. “No começo a Vale tava cuidando, mas agora já abandonou. Agora já virou até lixão, jogam carniça aí pro fundo, entendeu? E a gente que fica perto, fica sentindo o cheiro ruim”, lamenta Ana Júlia. A atingida diz ver a vigilância contratada pela Vale ar todos os dias, no mesmo horário: “Eles têm horário certo de ar”, mas que a noite não há segurança.
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Outro vizinho da Zona de Autossalvamento, o comerciante Anderson Cordeiro da Silva Torres, 45 anos, relata a falta de cuidados da mineradora Vale com os imóveis localizados na ZAS. “Você vê que tem uma casa ali abandonada, é lixo puro lá dentro. Então, eles não tão aí direto, é uma vez ou outra. E isso quando alguém liga para vir, porque o trem tá feio”. O mercado de Anderson fica muito próximo da ZAS, mas é o descaso que mais o incomoda. “Ninguém nunca veio cá me perguntar se esse entulho atrapalha alguma coisa. Claro que atrapalha! Porque é lixo, é mau cheiro. Eu faço o que dá para fazer para manter o meu comércio limpo, porque se depender mesmo de Vale ou de prefeitura, nós estamos perdidos”, desabafa Anderson.
Algumas famílias que convivem com as consequências do abandono da ZAS entraram com processo na Justiça, pedindo a própria remoção. O medo do rompimento da barragem, os surtos de arboviroses causadas pelos nascedouros de mosquitos nos imóveis abandonados, a ocupação noturna dos imóveis por pessoas em situação de vulnerabilidade e uso problemático de substâncias, a paisagem catastrófica, a poeira das obras na Barragem Doutor, o mau cheiro, tudo isso, faz com que suas casas deixem de ser um lar. Dona Giovania explicita a situação: “Algumas casas, ela derrubou… E outras, que estão de pé, a Vale não tá dando manutenção. Matos, entulhos, água parada… A crise de dengue que teve aqui, foi justamente por causa disso tudo. E a Vale não está levando em consideração isso. E como é que fica a saúde da pessoa atingida que convive com esse tipo de dano?”, questiona ela.
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São danos sobrepostos que representam uma violação do direito humano e universal à moradia digna. Carla*, está “ilhada” entre moradias abandonadas de famílias que foram removidas pela Vale. “É difícil! Tira a liberdade da gente, é entulho que joga, o para qualquer um entrar, o fundo de casa é aberto daí tira a liberdade… Tá bem tenso. Tem muita sujeira!”, relata a atingida, que também prefere não se identificar. O abandono e o medo são tamanhos, que para ela, as remoções deveriam se estender para toda a vizinhança. “A gente fica num lugar assim, abandonado. Não convém ficar morando num lugar assim. Eles tinham que tirar todo mundo”, conclui.
Na Vila Residencial Antônio Pereira, os imóveis presentes na Zona de Autossalvamento não estão em escombros, mas o desleixo é evidente em toda a ZAS. “A planta tomou conta do portão, significa que o portão há muito tempo não vem sendo aberto. A gente não sabe a sujeira que está aqui dentro, a gente não sabe o que tá acontecendo aqui dentro dessa casa”, relata Maria Helena Rocha Ferreira em frente a um portão tomado pela planta hera. A moradora da Vila, também integrante da Comissão de Pessoas Atingidas de Antônio Pereira, acompanhou todo o percurso nos entornos da ZAS e aponta: “Pelo visto a Vale não vem cuidando bem das casas conforme foi determinado em decisão judicial”.
A decisão mencionada por Maria Helena foi proferida no dia 14 de abril de 2020 e determina, entre outras as ações emergenciais, “a adoção de providências, no prazo de 5 (cinco) dias, para a segurança dos imóveis desocupados contra saques e roubos, ainda que remotamente e/ou com a instalação de estruturas de segurança nas áreas de entorno das áreas desocupadas”.
Não é a primeira vez que a população denuncia o descaso da Vale e o abandono da Zona de Autossalvamento. Em fevereiro de 2024, o Guaicuy recebeu diversas denúncias da população do distrito relacionadas ao aumento de criminalidade e proliferação de doenças nas casas depredadas e sem segurança que estão na ZAS.
O surto de dengue foi, em 2024, um dos efeitos mais graves: o distrito concentrou 85% dos casos registrados em Ouro Preto, resultado direto da negligência com os imóveis abandonados. Além disso, os moradores denunciam a ausência de diálogo e transparência da Vale sobre os riscos da Barragem Doutor e as ações em curso, o que aumenta a sensação de insegurança e incerteza sobre o futuro da comunidade.
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Em Antônio Pereira, os modos de vida das moradoras e moradores foram completamente atravessados pelo risco de rompimento da Barragem Doutor, da Vale. Esta barragem esteve em operação desde 2000, com 75 metros de altura e capacidade para 35 milhões de metros cúbicos de rejeitos. O nível de risco foi elevado para 2, em 1º de abril de 2020, numa escala que só vai até 3, num desdobramento tétrico do processo iniciado em março de 2019, quando determinação judicial havia interditado, por insegurança, as operações da Barragem Doutor. Com isso, vieram os processos de remoção forçada das famílias cujas moradias se situam na Zona de Autossalvamento (ZAS). Os deslocamentos compulsórios foram ainda mais sofridos porque a possível “mancha da lama” teve mais de um desenho, provocando remoções em diferentes tempos, de famílias que antes eram vizinhas. Tudo isso aconteceu no contexto já crítico, de necessário distanciamento social, causado pela maior crise sanitária do século, a pandemia de covid-19.
De acordo com a resolução 95 de 02/2022 da Agência Nacional de Mineração (ANM), a “Zona de Autossalvamento (ZAS) é o trecho à jusante da barragem em que se considera que os avisos de alerta à população são da responsabilidade do empreendedor, por não haver tempo suficiente para uma intervenção das autoridades competentes em situações de emergência, devendo-se adotar a maior das seguintes distâncias para a sua delimitação: a distância que corresponda a um tempo de chegada da onda de inundação igual a 30 (trinta) minutos ou 10 km (dez quilômetros)”.
Assim, a ZAS, em caso de rompimento de uma barragem, é a área de primeiro impacto do rejeito, não havendo tempo suficiente para que as autoridades possam socorrer de imediato às vítimas e diminuir os impactos e danos do rompimento.
Confira!
Cada um por si: zonas de autossalvamento são verdadeiras zonas de sacrifício.
Por Ellen Barros e Hariane Alves
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